sábado, 3 de julho de 2010

REFLEXÃO BIOÉTICA A RESPEITO DO AVANÇO CIENTÍFICO E TECNOLÓGICO EM GENÉTICA

REFLEXÃO BIOÉTICA A RESPEITO DO AVANÇO CIENTÍFICO E TECNOLÓGICO EM GENÉTICA
Etelvino de Souza Trindade*
Resumo: O conhecimento da genética evoluiu para a descoberta de técnicas de manipulação do genoma celular. A engenharia genética está permitindo entender e curar enfermidades. A manipulação de genes está sendo aplicada na biotecnologia e na bioindústria. Esses aspectos levam à reflexão sobre o uso que se pode fazer da genética. Tornou-se premente o entendimento de que a incumbência de dominar o conhecimento traz a responsabilidade de sua aplicação com respeito à biosfera e ao equilíbrio dos ecossistemas, sem introduzir mudanças irreversíveis. A intervenção no patrimônio genético deve ser concordante com a educação bioética das pessoas e não pode substituí-la.
Palavras-chave: bioética; genética; pesquisa genética.
Kant relatou um exemplo que é permanente quando pensamos ou agimos em torno da ciência: “pode ser observado que as prescrições tanto para o médico que quer curar o doente quanto para o envenenador que quer matar alguém são as mesmas, é o saber como fazer”. Isso traz à reflexão que o saber como fazer considera os meios, que podem obedecer às mesmas regras de procedimento, independentemente de se tratar de uma terapia ou de um assassinato. No entanto, há de se ter em mente os fins. Não é suficiente o simples respeito às regras do procedimento. A eficiência técnica não é o bastante para justificar os procedimentos. Existem outras questões a ser discutidas (Spinsanti, 1990).
Os ambientes científicos, muitas vezes, desligam-se dos referenciais de valores e de normas em nome da objetividade do saber. Dessa forma, a reflexão que se impõe é se a evolução dos conhecimentos e dos procedimentos, hoje disponíveis e com potencial de possibilidades não imagináveis, é ou será usada para o bem ou para o mal do ser humano (Song, 2002).
* Médico, Chefe da Unidade de Ginecologia Oncológica do Hospital de Base do Distrito Federal, Coordenador das Ações Programáticas em Câncer Ginecológico da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal, Pós-Graduado em Bioética pela Cátedra UNESCO de Bioética da Universidade de Brasília.
O sucesso da ciência é inegável. A aplicação da tecnologia abrange tudo e todos: manuseia-se a física, a química e a biologia; divide-se o átomo e pode-se intervir na estrutura genética da célula viva. Paralelamente, advêm questionamentos novos, de ordem epistemológica, antropológica e bioética. Na epistemologia, a pergunta a ser respondida é se o saber sobre a natureza, usando ferramentas que não sejam fornecidas pelas ciências humanas, é válido. Na antropologia, questiona-se com que objetivo é enfocado o projeto humano. Na bioética, há de se encontrar um consenso dos valores dentro de uma sociedade pluralista (Song, 2002).
No campo da medicina, o progresso trouxe perplexidade: a vida pode ser prolongada artificialmente, órgãos podem ser transplantados, é possível o uso de órgãos artificiais, a reprodução pode ser artificial, o comportamento dos indivíduos pode ser manipulado com o uso de fármacos e podem-se manipular geneticamente os embriões (Spinsanti, 1990).
A medicina está preparada para resolver problemas antes não pensados. As oportunidades de salvar vidas e de eliminar sofrimentos tornaram-se corriqueiras. Os avanços científicos e a aplicação tecnológica permitem às pessoas viverem mais tempo e melhor. A expectativa tornou-se enorme, no sentido de que esses avanços venham a resolver tudo. No entanto, as conquistas, embora promissoras e velozes, não dão resposta para várias situações (CREMESP, 2001).
A humanidade não pode ser dominada pela vertigem do possível. Hoje, está claro que a tecnologia necessita de limites que devem ser impostos pela antropologia e pela bioética, porque a contrapartida pode tornar-se a traição do próprio ser humano. Dentro da bioética, ter-se-á que recuperar a fidelidade ao passado e à tradição da ciência, com suas articulações, e criar a abertura para o futuro, quando ela tomará o aspecto de responsabilidade. Hans Jones disse que as pessoas devem “agir de tal modo que as conseqüências do (...) agir sejam conciliáveis com a sobrevivência de uma vida verdadeiramente humana sobre a terra”. Assim, a exigência bioética torna-se identificável com a aceitação da própria responsabilidade, que não mais permite o papel de espectador e nem as delegações desse encargo. As exigências equivalem-se quando se é o sujeito ou o protagonista das escolhas (Spinsanti, 1990).
No campo da medicina, na aplicação de tecnologias cada vez mais elaboradas e, principalmente, na intervenção genética, tornou-se urgente o chamado à reflexão dos profissionais da saúde. Eles não devem ser, apenas, os realizadores de atividades técnicas, deixando aos outros a elaboração do sentido e do espírito dessas técnicas que ele aplica. Os profissionais da saúde necessitam envolver-se na capacitação humanística que lhes facultará o discernimento do procedimento adequado para soluções bioéticas (Song, 2002).
O ser humano está conseguindo realizar uma forma de poder, sobre a natureza, inigualável, que é a aplicação de tecnologias que permitem intervir no próprio substrato da vida. Nos últimos anos, a genética, conhecida há mais de um século, tornou-se uma nova fronteira para a humanidade e tem trazido grandes esperanças, mas também enormes temores. De modo similar ao que aconteceu com a energia nuclear – estudos a respeito possibilitaram a criação da bomba atômica –, pode-se fazer uma correlação e dizer que os seres humanos estão com uma “bomba biológica” nas mãos (Spinsanti, 1990).
Dentro da história, há relatos da tentativa de melhoria dos seres humanos pela intervenção com sentido eugênico. Isso aparece desde Esparta, que pretendia melhorar a nação mediante a eliminação dos deficientes. Na genética, a história começa pelos descobrimentos de Mendel e pelo conhecimento da hereditariedade.
No início do século XX, começou a haver a aplicação da genética com o objetivo da eugenia. Isso chegou a ser aplicado entre as duas grandes guerras do século passado, com base em uma pátina de ciência, na Alemanha, nos Estados Unidos da América e nos países escandinavos. Não se obtiveram resultados e os programas eugênicos autoritários foram condenados sob o ponto de vista moral (Spinsanti, 1990).
Em virtude dessas tentativas, muitas vezes, as distorções da tecnologia foram confundidas com a ação de governos. Dessa forma, governos e novas tecnologias passaram a ser objeto de críticas. Porém, é necessária a compreensão de que a tecnologia permite o enriquecimento das nações e de que o impedimento da sua aquisição e aplicação condena-as ao empobrecimento e à submissão. A pesquisa científica deve ser estimulada. A aplicação do avanço tecnológico é que deve ser fiscalizado, regulamentado e eventualmente limitado em sua abrangência (Caboclo, 1993).
Em 1953, Watson e Crick descobriram a estrutura molecular do ácido desoxirribonucleico (ADN) e começou a história recente da genética, que chega aos dias atuais compreendendo o que ocorre na natureza e permitindo aos cientistas colocarem suas mãos no genoma celular. As técnicas de recombinação, que permitem fazer novas moléculas de ADN fora das células e reinseri-las para multiplicarem-se dentro da célula viva, estão disponíveis e entraram no dia-a-dia dos laboratórios de genética. A engenharia genética tornou-se o Eldorado da tecnologia atual, capaz de resolver todos os problemas da humanidade? Ou, ao contrário, poderá trazer a catástrofe? Neste caso, será um pesadelo causado não pela falta de conhecimento, mas pelo máximo da eficiência (Spinsanti, 1990).
A genética humana engloba questões relativas à procriação (generare) e as referentes ao patrimônio (genus), no que concerne à sua alteração e à sua investigação. Os conceitos são diversos quando se considera a manipulação – que usa técnicas de concepção do ser humano por técnicas não naturais – e a manipulação genética das experiências – que visam criar ou alterar o patrimônio genético de espécies vivas. A engenharia genética insere-se no segundo aspecto. Dessa forma, ela é utilizada para entender e curar enfermidades ou para produzir transformações com finalidade experimental, no intuito de conseguir indivíduo com característica inexistente na espécie. O primeiro caso é a terapia genética, e o segundo configura a manipulação genética (Costa, 2004).
Os aspectos referentes à procriação entraram no cotidiano da humanidade. Porém, essa ação não está isenta de problemas, nem está definitivamente equacionada sob o ponto de vista bioético.
O diagnóstico pré-natal, utilizando técnicas de biologia molecular, permite saber a existência de anomalias cromossômicas e verificar doenças hereditárias. O corolário é a apresentação da questão da interrupção da gravidez. Dentro do mesmo aspecto, os procedimentos técnicos podem permitir a determinação de certas qualidades ou propriedades desejáveis com o corolário da questão da permissão de um direito de se ter um filho com características pré-estabelecidas, ou seja, de encomenda.
As formas de reprodução assistida em uso levaram a um estoque de embriões excedentes, armazenados em crioconservação nos laboratórios. O corolário é o que fazer com os embriões excedentes. Em alguma época deverão ser destruídos? Ou podem ser usados para fins de investigação científica? Na realidade, o embrião crioconservado, embora não tenha característica de ser humano, certamente possui um status moral superior ao de uma vida animal ou vegetal.
A doação de óvulos e a maternidade de substituição criam uma situação nova: a maternidade é dupla na doação de óvulos: há uma mãe genética e outra mãe legal ou social. Mas, pode ser tripla, na maternidade de substituição, no caso de uma mulher doar um óvulo para outra que quer ser mãe e que utiliza o útero de uma terceira mulher para a gestação. Nesse caso, configura-se uma mãe hospedeira, outra mãe genética e uma terceira mãe social. Os corolários são dois: primeiro, o problema que advirá para a criança gerada e, segundo, a reflexão sobre o fato de o ser humano poder ser objeto de transação e sobre a estipulação de um limite aceitável (Franco, 1996).
A técnica de inserir, no patrimônio genético de uma célula, um fragmento de ADN estranho, obtido por síntese química, foi descrito em 1973.
Em 1974, houve um alarme no meio científico especializado, com apelo, em carta aberta, à auto-regulamentação. Os experimentos genéticos foram colocados em moratória.
Em 1975, na conferência de Asilomar, na Califórnia, EUA, foi tomada a decisão de se dar continuidade aos experimentos. Daí em diante, a medida de precaução e o regulamento foram considerados de forma descontínua, com abrandamentos e restrições em vários países (Spinsanti, 1990).
Em julho de 1997, nasceu a ovelha Dolly, primeiro animal clonado com sucesso. O que constituía atividade restrita aos laboratórios e ao mundo científico tornou-se difundido para toda a sociedade e trouxe fascínio e medo (Costa, 2004).
A manipulação genética – técnica aplicada da engenharia genética – adquiriu importância quando modificou o patrimônio genético da célula viva. Atualmente, ela pode produzir micro-organismos modificados para pesquisa em laboratório e conseqüente risco de saúde para os cientistas e, também, para o ambiente, na eventual liberação acidental deles; pode transferir capacidades genéticas de um organismo vivo para outro, de forma a melhorar suas características na hereditariedade dos filhos, com potencial risco para os seres humanos e para o meio-ambiente. As pesquisas com células germinativas humanas são destinadas às finalidades terapêuticas e não-terapêuticas.
A tecnologia aponta para o fato de se poderem criar clones idênticos e, também, seres meio humanos e meio animais, híbridos, com suas inúmeras possibilidades, muitas delas assustadoras.
No que tange à terapia gênica, existem experiências realizadas com sucesso nessa área, em enfermidades monogenéticas como a hemofilia, em alguns tumores e na eliminação de desvios da normalidade com finalidade eugenésica. Esse último aspecto conduz às reflexões sobre o risco da seleção genética (Franco, 1996).
O cenário apocalíptico – germes patogênicos novos; bactérias mutantes, resistentes aos tratamentos; risco de câncer; monstruosidades – irrita os cientistas, que, para conquistar o público, acenam com o utilitarismo como o da solução do problema alimentar da humanidade e o do controle de doenças.
Na realidade, a manipulação genética, com suas aplicações na biotecnologia e na bioindústria, exige reflexão bioética. Não se trata da tomada de posições emocionais acerca dos riscos inerentes às pesquisas e às aplicações tecnológicas. Considerados realisticamente, esses aspectos não dependem da genética, mas do uso que se pode fazer dela. Assim, o problema é de responsabilidade, que, nesse caso, está muito aumentada (Spinsanti, 1990).
A medicina nunca esteve tão preparada para eliminar sofrimentos e para salvar vidas. Em grande parte, isso se deveu aos avanços da ciência, pelas pesquisas e aplicações de novas tecnologias, que têm levado as pessoas a viverem cada vez mais e melhor. Isso gerou uma enorme expectativa de que a medicina poderá resolver tudo. Mas, o aspecto promissor conduz à contrapartida de faltarem respostas para muitas situações.
Sobrinho e colaboradores (2004) afirmam haver necessidade “de uma preocupação ética como parte integrante da produção das tecnologias, da sua aplicação e da organização do trabalho no interior dos serviços” .
Ao se pensar em qualidade de vida, busca-se a perfeição humana por entender-se que os mais bem dotados e mais saudáveis teriam essa qualidade de vida superior. A falha na aplicação desse entendimento é que ele padece do vício de quantificar o respeito por uma determinada pessoa em função de sua situação vital (Oliveira, 2005).
A idéia de proibir pesquisas genéticas em nome da bioética, porque a ciência pode estar contra a natureza, é vã. O entendimento de que manipulação tem conotação negativa, de transgressão de limites, deve ser visto como mudança planejada da natureza biológica a serviço dos seres humanos e, assim, passa a ser aceitável e condizente com uma moral hegemônica. Porém, a aplicação da tecnologia precisa respeitar a biosfera, o equilíbrio dos ecossistemas para que não sejam introduzidas mudanças irrevogáveis (Spinsanti, 1990).
No caso do uso de embriões humanos em clonagem, as inquietações são mais agudas. É inegável que a obtenção de linhagens embrionárias mães abre novas perspectivas para o tratamento de uma grande quantidade de doenças e que esse tipo de pesquisa é indispensável em decorrência dos estudos em animais não poderem proporcionar uma alternativa apropriada para o objetivo colimado. Porém, apesar dos benefícios que se podem alcançar, não resta dúvida de que suas aplicações podem ultrapassar os limites éticos (Cantú, 2005).
Segundo Fushida, os conceitos do transumanismo – ao idealizar o controle do destino biológico dos humanos, que seria desvinculado do seu processo evolutivo, inaugurando uma nova era de uma nova espécie, e cuja tecnologia, um dia, seria usada para tornar os seres humanos mais fortes, mais inteligentes, menos violentos e com tempo de vida mais longo – já vêm sendo empregados, pois já existem programas de pesquisa da biomedicina, atendendo a esses postulados. Novos procedimentos estão surgindo nos laboratórios, medicamentos são utilizados para alterar o humor e a massa muscular, exames genéticos pré-natais são realizados e a terapia genética já está sendo aplicada. (Pessini, 2005).
Enfim, a ciência está avançando tão rapidamente que se tornam necessárias discussões e reflexões sérias para a distinção entre as transformações salutares e as de potencial destrutivo (Rossini, 2005).
O que se torna premente é o entendimento de que a incumbência de dominar o conhecimento traz a responsabilidade de sua aplicação. A biosfera e o equilíbrio dos ecossistemas precisam ser preservados. As mudanças não podem tornar-se irrevogáveis. Isso se chama prudência. O projeto de melhorar os seres humanos é legítimo, mas os meios aplicados podem não ser indiferentes. A intervenção no patrimônio genético deve ser concordante com a educação bioética das pessoas e não pode substituí-la.
Referências Bibiliográficas
CABOCLO, J.L.F. Ética e Tecnologia. In: Desafios Éticos. Brasília: CFM – Conselho Federal de Medicina, 1993. p.256-260.
CANTÚ, J.M.; PÉREZ, D.R.; OSMANCZIK, U.S. Clonación Humana Reproductiva, Terapêutica y Social. Rev Bras Bioet., 2005, 1(2): 164-179.
COSTA, E.F. et al. Questões Éticas e Jurídicas da Clonagem em Seres Humanos. In: GIRALDI, N.; GARRAFA, V.; SIQUEIRA, J.E. de; PROTA, L. (eds). Bioética, Estudos e Reflexões 4, Vol. I, Cefil, 2004, p 169-188.
SIQUEIRA, J.E. de; PROTA, L. (Eds.). Bioética, Estudos e Reflexões 4. Brasília: Cefil, 2004. vol. I, p. 169-188.
Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo: Apresentação. In: Guia da Relação Médico-Paciente. São Paulo: CREMESP, 2001.
FRANCO, A.S. Genética Humana e Direito. Bioética – CFM, 1996, 4(1):17-29.
OLIVEIRA, A.A.S. Anencefalia e Transplante de Órgãos. Rev Bras Bioet., 2005, 1(1):61-74.
PESSINI, L. Bioética das Instituições Pioneiras. Perspectivas Nascentes aos Desafios da Contemporaneidade II, Rev Bras Bioet., 2005, 1(3): 297-311.
SOBRINHO, C.L.N.; NASCIMENTO, M.A.; CARVALHO, F.M. Ética e Subjetividade no Trabalho Médico. Bioética - CFM, 2004, 12(2):23-32.
SONG, R. Introdução. Saúde, Medicina e a Nova Genética. In: Genética Humana: Fabricando o Futuro. São Paulo: Loyola, 2002. p. 9-16; p. 17-48.
SPISANTI, S. Introdução: Este Livro: Por que e Como. A genética: Nova Fronteira da Bioética: O Homem e a Natureza Ética Biomédica. In: Ética Biomédica. São Paulo: Paulinas, 1990. p. 5-9; p. 47-54.

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